(...) Já nos primeiros dias do
descobrimento e colonização do vale amazônico os cronistas da estirpe intelectual do
padre João Daniel, Vieira e Bettendorf, que recolheram subsídios para o conhecimento da
personalidade do indígena, através dos seus vícios, mais numerosos, no dizer deles, do
que as virtudes, logo o apontaram como dado à bebedice.
Fabricam seus vinhos... diziam; embriagam-se constantemente, nas suas danças e outras
ocorrências sociais cometem crimes de toda natureza, flechando-se e golpeando-se com seus
quicés, talhados nas lâminas de taquaras, ou com os seus tacapes e cacetes.
Assim, forçoso era que os missionários antes de qualquer solenidade religiosa ou tribal,
saíssem a quebrar quanta vasilha continha aqueles vinhos, vinhos de frutas
silvestres, de milho; de batatas agrestes, de mandioca.
Os vinhos tinham nomes sonoros e podiam atingir elevado grau de fermentação,
assim os retivessem nos cochos e outras vasilhas que lhes eram destinadas. Chamavam tarubá,
mocororó ou makururu, tiquira, caxiri ou caxiry, chibé, aluá e cayssuma.
Os vinhos, feitos com beijus de mandioca, eram postos a fermentar em compridos e
fundos cochos de madeira ou em potes de argila, decorados com figuras míticas e desenhos
geométricos, de fina inspiração artística; e levavam à embriaguez, é verdade, sendo,
porém, menos prejudiciais à saúde do que a aguardente do Reino, que o colonizador
trouxera consigo, e do que essa enfeitiçadora cachaça ou parati, fabricada com o sumo da
cana trazida da Índia ou de São Vicente.
O padre João Daniel exageraria, por certo, quando assim se manifestava contra aquela
inocente bebedice: "De modo ordinário rematam estes festins nos efeitos e desgraças
da bebedice, que são bulhas, pancadas, feridas e mortes; uns porque têm inimigos, e
alterando-se com o Baccho a cólera, desabafam em vinganças; outros porque bêbados não
sabem o que fazem; estes por se quererem mostrar valentes, e aqueles por alguma raiva. E
nas mesmas aldeias e missões não só conservam as mesmas festas e beberronias, mas
também rematam ordinariamente aos mesmos efeitos e desgraças.
Veja-se aqui, embora ligeiramente descritos, o que eram os vinhos dos nossos
indígenas.
O tarubá era feito com uma grande quantidade de beijus de mandioca, postos
n’água, envoltos em folhas de bananeira, sororoca ou de curumin-caá, a
que ajuntavam certo fermento e mesmo alguma quantidade de mel, deixando que destilasse
durante determinado número de dias. E nisso punham uma técnica tradicional, que a
química moderna viria a reconhecer admirável. A puçanga, a que se refere Alfredo
da Mata, era seguramente o fermento aqui referido. Tomava uma ligeira densidade de cerveja
e não de mingau ou caribé, como outros autores entenderam comparar. E, como os velhos
vinhos, das adegas de Portugal e de França, deliciava o paladar e entontecia os sentidos.
A técnica do preparo do tarubá é descrita, também, por alguns observadores e
provadores, sem dúvida, de modo a confundi-la com a que se emprega no preparo de tikira.
Os beijus, embrulhados daquela maneira, eram estendidos em jiraus, à sombra, na
casa-de-farinha, sendo polvilhados com o fermento.
A finalidade era, porém uma só: dar alegria ao povo, alegria expressa no vocábulo turyua,
da sua tradicional saudação. Barbosa Rodrigues dizia do tarubá que era
"uma bebida espirituosa, feita com beijus, de mandioca.
O mocororó ou makururu era uma bebida feita de arroz cozido ou de mandioca, que se
deixava fermentar nos mesmos vasilhames acima referidos. E, como o tarubá, era
apreciadíssimo pela indiada, visto que a punha naquele estado de "beberronia" a
que aludia o padre João Daniel.
A tikira é outra bebida indígena tradicional, cujo centro de produção e de
consumo tem o Estado do Maranhão como área, mas ainda há quem a prepare no interior do
Pará e do Amazonas.
O insigne químico, professor Osvaldo Gonçalves de Lima, segundo nos informou Nunes
Pereira, ensina que "essa bebida é o destilado de uma cerveja indígena, feita de
mandioca, sob uma técnica de fermentação que foge do mastigatório primitivo tão
freqüente na preparação das bebidas desse gênero, entre os povos naturais; sendo
antes, na importância dos elementos culturais que encerram um fato denunciador de
valiosos aspectos do poder de observação e da capacidade inventiva do aborígine,
sabendo aproveitar de maneira assaz perfeita, a julgar pelas condições precárias em que
agiu, a ação sacarificante dos fundos".
Na tikira ou tiquira (como escreveu O. G. de Lima) entram - tal qual no tacacá por
nós acima salientado - os beijus feitos "de massa da mandioca ralada e prensada.
A massa dos beijus é diluída n’água e posta a fermentar durante dois a três dias.
No Maranhão corre a crença de que quem toma dessa bebida não pode molhar os pés, pois,
se o fizer, enlouquecerá fatalmente.
O caxixi é qualquer bebida feita de bulbos, tubérculos ou frutos da flora
amazônica. O melhor caxiri porém, é o feito como o tarubá e a tikira,
com beijus de mandioca, desmanchados n’água, a que associam mel ou rapadura.
Stradelli, que emite quase idêntica definição, diz que o vocábulo deu nome a uma
festa, na qual bebem o caxiri largamente. "É festa particular, para a qual não há
época prefixada, nem há convites, embora seja sempre bem-vindo qualquer estranho."
O chibé, na inteireza de sua composição, resulta de alguns punhados de farinha
de mandioca numa cuia d’água, cujos grãos lentamente amolecem e transmitem ao
líquido um sabor acidulado. A farinha tem de ser necessariamente a dita d’água.
Imprimindo-se à vasilha um movimento rotativo, da direita para a esquerda,
sucessivamente, consegue-se que venham à tona fragmentos dessa farinha, que não
amoleceram, numa operação denominada cessar, semelhante à que se procede com
farinhas espessas numa esteira ou urupema. É bebida que refresca e acalma o organismo nas
grandes soalheiras, quando se viaja em canoa.
A cayssuma é outra bebida que pode embriagar, de acordo com o tempo de
fermentação e de entrar no seu preparo o milho, a mandioca ou a batata-doce,
dispensando-se, no caso do milho, o tal mastigatório primitivo, porque esse cereal, a
mandioca e a batata-doce são sempre fervidos. Stradelli esclarece essa técnica com as
palavras seguintes: "O milho grosseiramente pilado é empastado com água morna e
posto a cozinhar em pupecas de folha de arumã ou pacoba; e quando cozido, uma parte é
desmanchada pura e simplesmente n’água, outra é desmanchada nela depois de
conscienciosamente mascada. É um serviço em que se empregam todos os presentes na casa
sem distinção. A bebida fica pronta no terceiro dia e servida depois de cuidadosamente
escumada".
A caysuma ou caissuma também é produzida com o emprego de frutos silvestres.
Dispensa fervura e mastigação, bastando que, depois de espremida, lhes ponham a massa. a
fermentar pelo espaço de alguns dias.
Depois da caysuma de abacaxi, para algumas pessoas, a preferida será sempre a que se faz
com a massa dos frutos da palmeira chamada pupunha. Essa massa, gordurosa
extraordinariamente, é cozida e posta a fermentar durante dois a três dias.
O cacau não tem seu valor limitado apenas às bagas que, depois de torradas e
piladas, constituem o chocolate. Da polpa dessas bagas também fabricam um vinho, espremendo-se
num tipiti (o mesmo utensílio de palha trançada utilizado na extração do tucupi)
como se se espremesse a massa da mandioca.
O líquido é bebido no mesmo dia, não sofrendo fermentação.
O aluá é bebida feita de milho cozido, que se deita depois numa vasilha de barro,
num cocho ou num barril, adicionando-se-lhe açúcar, cachaça e gengibre.
Depois de submetido a uma fermentação de poucos dias, pode ser bebido no decorrer das
festas juninas, nos arraiais e mesmo em ambiente doméstico.
O açaí é a bebida predileta dos paraenses e dos amazonenses, sendo preparada com
a polpa roxa dos carocinhos de uma das mais elegantes palmeiras da Amazônia.
Mergulhando-os num alguidar, sob o esforço ritmado das mãos de uma amassadeira, isto
é, de uma mulher experimentada nesse trabalho, são uniformemente macerados, à
proporção que se lhes junta cuias de água fresca.
Costuma-se, entretanto, deixar os carocinhos da palmeira açaí numa vasilha com água
morna, para facilitar a maceração da polpa, o que dá ao vinho uma espessura de
xarope. A massa é passada, depois da maceração, numa peneira ou urupema. Associam-lhe
açúcar, farinha-d’água ou de tapioca, antes de beber-lhe o líquido, de cor
arroxeada, nas cuias típicas da região, de Santarém ou de Óbldos. Esse vinho, se
cozido, é chamado mingau de açaí.
De uma outra palmeira também são aproveitados os frutos para o preparo de um
vinho - o da bacaba. A técnica de maceração é a mesma. E a do vinho da palmeira
buriti, igualmente.
Enquanto as outras bebidas ou vinhos, acima relacionados e descritos, possam levar à
embriaguez, o vinho de açaí, ao contrário, é considerado um alimento preciosíssimo,
rico em vitaminas e outros princípios nutritivos, atenuando em grande parte o problema
social da nutrição das populações rurais e das cidades e vilas da Amazônia.
(...)
(Orico, Oswaldo. Cozinha amazônica, p.104-107)
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