domingo, 6 de maio de 2012

VINHOS DE FRUTAS SILVESTRES E OUTRAS BEBIDAS INDÍGENAS

(...) Já nos primeiros dias do descobrimento e colonização do vale amazônico os cronistas da estirpe intelectual do padre João Daniel, Vieira e Bettendorf, que recolheram subsídios para o conhecimento da personalidade do indígena, através dos seus vícios, mais numerosos, no dizer deles, do que as virtudes, logo o apontaram como dado à bebedice.

Fabricam seus vinhos... diziam; embriagam-se constantemente, nas suas danças e outras ocorrências sociais cometem crimes de toda natureza, flechando-se e golpeando-se com seus quicés, talhados nas lâminas de taquaras, ou com os seus tacapes e cacetes.

Assim, forçoso era que os missionários antes de qualquer solenidade religiosa ou tribal, saíssem a quebrar quanta vasilha continha aqueles vinhos, vinhos de frutas silvestres, de milho; de batatas agrestes, de mandioca.

Os vinhos tinham nomes sonoros e podiam atingir elevado grau de fermentação, assim os retivessem nos cochos e outras vasilhas que lhes eram destinadas. Chamavam tarubá, mocororó ou makururu, tiquira, caxiri ou caxiry, chibé, aluá e cayssuma.

Os vinhos, feitos com beijus de mandioca, eram postos a fermentar em compridos e fundos cochos de madeira ou em potes de argila, decorados com figuras míticas e desenhos geométricos, de fina inspiração artística; e levavam à embriaguez, é verdade, sendo, porém, menos prejudiciais à saúde do que a aguardente do Reino, que o colonizador trouxera consigo, e do que essa enfeitiçadora cachaça ou parati, fabricada com o sumo da cana trazida da Índia ou de São Vicente.

O padre João Daniel exageraria, por certo, quando assim se manifestava contra aquela inocente bebedice: "De modo ordinário rematam estes festins nos efeitos e desgraças da bebedice, que são bulhas, pancadas, feridas e mortes; uns porque têm inimigos, e alterando-se com o Baccho a cólera, desabafam em vinganças; outros porque bêbados não sabem o que fazem; estes por se quererem mostrar valentes, e aqueles por alguma raiva. E nas mesmas aldeias e missões não só conservam as mesmas festas e beberronias, mas também rematam ordinariamente aos mesmos efeitos e desgraças.

Veja-se aqui, embora ligeiramente descritos, o que eram os vinhos dos nossos indígenas.

O tarubá era feito com uma grande quantidade de beijus de mandioca, postos n’água, envoltos em folhas de bananeira, sororoca ou de curumin-caá, a que ajuntavam certo fermento e mesmo alguma quantidade de mel, deixando que destilasse durante determinado número de dias. E nisso punham uma técnica tradicional, que a química moderna viria a reconhecer admirável. A puçanga, a que se refere Alfredo da Mata, era seguramente o fermento aqui referido. Tomava uma ligeira densidade de cerveja e não de mingau ou caribé, como outros autores entenderam comparar. E, como os velhos vinhos, das adegas de Portugal e de França, deliciava o paladar e entontecia os sentidos.

A técnica do preparo do tarubá é descrita, também, por alguns observadores e provadores, sem dúvida, de modo a confundi-la com a que se emprega no preparo de tikira. Os beijus, embrulhados daquela maneira, eram estendidos em jiraus, à sombra, na casa-de-farinha, sendo polvilhados com o fermento.

A finalidade era, porém uma só: dar alegria ao povo, alegria expressa no vocábulo turyua, da sua tradicional saudação. Barbosa Rodrigues dizia do tarubá que era "uma bebida espirituosa, feita com beijus, de mandioca.

O mocororó ou makururu era uma bebida feita de arroz cozido ou de mandioca, que se deixava fermentar nos mesmos vasilhames acima referidos. E, como o tarubá, era apreciadíssimo pela indiada, visto que a punha naquele estado de "beberronia" a que aludia o padre João Daniel.

A tikira é outra bebida indígena tradicional, cujo centro de produção e de consumo tem o Estado do Maranhão como área, mas ainda há quem a prepare no interior do Pará e do Amazonas.

O insigne químico, professor Osvaldo Gonçalves de Lima, segundo nos informou Nunes Pereira, ensina que "essa bebida é o destilado de uma cerveja indígena, feita de mandioca, sob uma técnica de fermentação que foge do mastigatório primitivo tão freqüente na preparação das bebidas desse gênero, entre os povos naturais; sendo antes, na importância dos elementos culturais que encerram um fato denunciador de valiosos aspectos do poder de observação e da capacidade inventiva do aborígine, sabendo aproveitar de maneira assaz perfeita, a julgar pelas condições precárias em que agiu, a ação sacarificante dos fundos".

Na tikira ou tiquira (como escreveu O. G. de Lima) entram - tal qual no tacacá por nós acima salientado - os beijus feitos "de massa da mandioca ralada e prensada.

A massa dos beijus é diluída n’água e posta a fermentar durante dois a três dias.

No Maranhão corre a crença de que quem toma dessa bebida não pode molhar os pés, pois, se o fizer, enlouquecerá fatalmente.

O caxixi é qualquer bebida feita de bulbos, tubérculos ou frutos da flora amazônica. O melhor caxiri porém, é o feito como o tarubá e a tikira, com beijus de mandioca, desmanchados n’água, a que associam mel ou rapadura. Stradelli, que emite quase idêntica definição, diz que o vocábulo deu nome a uma festa, na qual bebem o caxiri largamente. "É festa particular, para a qual não há época prefixada, nem há convites, embora seja sempre bem-vindo qualquer estranho."

O chibé, na inteireza de sua composição, resulta de alguns punhados de farinha de mandioca numa cuia d’água, cujos grãos lentamente amolecem e transmitem ao líquido um sabor acidulado. A farinha tem de ser necessariamente a dita d’água.

Imprimindo-se à vasilha um movimento rotativo, da direita para a esquerda, sucessivamente, consegue-se que venham à tona fragmentos dessa farinha, que não amoleceram, numa operação denominada cessar, semelhante à que se procede com farinhas espessas numa esteira ou urupema. É bebida que refresca e acalma o organismo nas grandes soalheiras, quando se viaja em canoa.

A cayssuma é outra bebida que pode embriagar, de acordo com o tempo de fermentação e de entrar no seu preparo o milho, a mandioca ou a batata-doce, dispensando-se, no caso do milho, o tal mastigatório primitivo, porque esse cereal, a mandioca e a batata-doce são sempre fervidos. Stradelli esclarece essa técnica com as palavras seguintes: "O milho grosseiramente pilado é empastado com água morna e posto a cozinhar em pupecas de folha de arumã ou pacoba; e quando cozido, uma parte é desmanchada pura e simplesmente n’água, outra é desmanchada nela depois de conscienciosamente mascada. É um serviço em que se empregam todos os presentes na casa sem distinção. A bebida fica pronta no terceiro dia e servida depois de cuidadosamente escumada".

A caysuma ou caissuma também é produzida com o emprego de frutos silvestres. Dispensa fervura e mastigação, bastando que, depois de espremida, lhes ponham a massa. a fermentar pelo espaço de alguns dias.

Depois da caysuma de abacaxi, para algumas pessoas, a preferida será sempre a que se faz com a massa dos frutos da palmeira chamada pupunha. Essa massa, gordurosa extraordinariamente, é cozida e posta a fermentar durante dois a três dias.

O cacau não tem seu valor limitado apenas às bagas que, depois de torradas e piladas, constituem o chocolate. Da polpa dessas bagas também fabricam um vinho, espremendo-se num tipiti (o mesmo utensílio de palha trançada utilizado na extração do tucupi) como se se espremesse a massa da mandioca.

O líquido é bebido no mesmo dia, não sofrendo fermentação.

O aluá é bebida feita de milho cozido, que se deita depois numa vasilha de barro, num cocho ou num barril, adicionando-se-lhe açúcar, cachaça e gengibre.

Depois de submetido a uma fermentação de poucos dias, pode ser bebido no decorrer das festas juninas, nos arraiais e mesmo em ambiente doméstico.

O açaí é a bebida predileta dos paraenses e dos amazonenses, sendo preparada com a polpa roxa dos carocinhos de uma das mais elegantes palmeiras da Amazônia. Mergulhando-os num alguidar, sob o esforço ritmado das mãos de uma amassadeira, isto é, de uma mulher experimentada nesse trabalho, são uniformemente macerados, à proporção que se lhes junta cuias de água fresca.

Costuma-se, entretanto, deixar os carocinhos da palmeira açaí numa vasilha com água morna, para facilitar a maceração da polpa, o que dá ao vinho uma espessura de xarope. A massa é passada, depois da maceração, numa peneira ou urupema. Associam-lhe açúcar, farinha-d’água ou de tapioca, antes de beber-lhe o líquido, de cor arroxeada, nas cuias típicas da região, de Santarém ou de Óbldos. Esse vinho, se cozido, é chamado mingau de açaí.

De uma outra palmeira também são aproveitados os frutos para o preparo de um vinho - o da bacaba. A técnica de maceração é a mesma. E a do vinho da palmeira buriti, igualmente.

Enquanto as outras bebidas ou vinhos, acima relacionados e descritos, possam levar à embriaguez, o vinho de açaí, ao contrário, é considerado um alimento preciosíssimo, rico em vitaminas e outros princípios nutritivos, atenuando em grande parte o problema social da nutrição das populações rurais e das cidades e vilas da Amazônia.

(...)


(Orico, Oswaldo. Cozinha amazônica, p.104-107)

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